PORK



Surtou um dia. Não era mais sujeito. Surtou, dizem, mas não é como eu vejo o que aconteceu. A gota d’água foi ao sair numa sexta de manhã bem cedo para trabalhar e ver um caminhão carregado de animais parar na frente de um açougue. Viu o carregador descer com os pobres animais recém-abatidos, cortados da calda ao focinho, e entrar no açougue com os pobres carregados como qualquer carga, qualquer coisa. Estatelado com a cena, lembrou-se dos documentários que vira sobre o abate de animais, sobretudo de pobres porquinhos. Não eram animais livres, desde o nascimento eram mantidos enjaulados. Não comiam o que a natureza lhes proporcionou, era ração de engorda, alguns mau andavam por causa do rápido peso que ganhavam. Ao morrer, as piores torturas: choques, chutes, socos, tiros, sangramentos.
Ah, como bacon cheira bem, não é?
Ah, um torresmo, uma feijoada!
Não! ... lembrou-se das reuniões em família que tinham se tornada para ele uma tortura depois que optara por ser vegetariano e posteriormente vegano.
- Ah, mas sempre foi um esquisito mesmo...
- Não entendo o que você come agora!
- Que besteira hein!
Ódio. Revoltou-se. Agora era ele que achava esquisito, não entendia essa besteira. Como o ser humano pode ser tão cruel? Como?
Documentários o impactaram, mas ver aquela carne rosada na sua frente, quase que ainda pulsando, foi o choque de realidade que precisava.
Não viu como chegou tão perto e já estava tocando aquela carne ainda sangrando dentro do caminhão. Ao voltar, o carregador assustou-se e mandou que ele saísse.
Gritou. Alto.
Gritou com lágrimas nos olhos.
Gritou chorando e rindo.
O carregador se assustou, logo uma multidão se juntou, uns riam, outros assustados, outros chocados, outros só vendo o circo pegar fogo. E pegou. A polícia foi chamada, a princípio só acharam graça, mas então ele, no auge de sua revolta e ojeriza contra a humanidade, pensou que a única solução para o mau humano era a punição e ele mesmo, como humano, deveria igualmente ser punido. “Vou punir e ser punido. É o justo! ”.
Começou a falar no meio da gritaria, choro e sangue, aquele discuros que muitos classificam como louco, natureba, riponga, exagerado e blá-blá-blá. Acabou sendo enquadrado no famoso desacato à autoridade e “teje preso”. Foi tranquilo, apesar das emoções à flor da pele, ou seria até melhor dizer emoções à folha da planta, pois agora considerava-se inumanamente planta.
Queria punição, queria punir e queria ser punido. Mas não imaginou o que viria. Ou talvez tenha. Deixaram-no por uma semana preso e todos os dias lhe serviam carne de algum animal diferente. Riam ao servi-lo e mais ainda quando ele jogava o prato longe.
Enfim, mandaram-no para casa. Perdeu o emprego, largou a própria casa. Sua fome e sede não estavam ainda saciadas. Enfiou-se em um caminhão que seguia para o campo para pegar mais animais e lá a mortandade quase o fez surtar de vez.
Dizem que foi surto. Mas depende do ponto de vista.
Quando chegou à fazenda, escondeu-se no meio do mato. De inumanamente planta, tornou-se animal revoltado e consciente de sua força. Passou a andar por todas as fazendas e sítios da região, e todo dia abria uma porteira. Relatos de animais correndo pela cidade eram frequentes, as notícias saíam nos jornais locais e a polícia passou a investigar.
Seu erro foi ir para a cidade. Agora parecia mendigo, andava errante, sujo e bufando pelas ruas. Passou a atacar os restaurantes locais e toda noite fugia para não ser espancado. Gritava pelas ruas de dia, soltava animais à noite. Vários deles foram adotados por crianças, mas ao ganhar peso, era o mesmo destino: panela.
Infeliz ideia um dia, resolveu entrar no abatedouro de bois. Seguiu em fila os animais, tentou parar as máquinas em que penduravam os pobres para sangrar até o fim. Visto, os empregados rapidamente avisaram ao patrão. Este sorriu pelo canto da boca e mandou que o tratassem como os bois. Não pretendia mata-lo, mas não foi suficientemente claro com seus capangas, que acabaram por abater o pobre e misturar sua carne com a bovina. Azar que a inspeção bateu na porta do patrão, verificou as carnes e acabou descobrindo DNA humano lá.
Polícia, mídia.
Aos poucos tudo foi sendo esquecido, nenhum parente apareceu. O patrão da fazenda deu uma festa enorme para a cidade no ano seguinte com um grande churrasco, claro, e tudo seguiu sua normalidade.
O povo comendo os porcos maltratados.
O povo bebendo leite de tetas inflamadas.
O povo comendo carne endurecida e tóxica de bois que sentem medo no abate.
O povo comendo frango engordado e aleijado.
O povo com colesterol ruim e gordura cada vez em maior quantidade no corpo adoecendo.
- como isso pode fazer algum bem, diria nosso amigo.
A mídia continua a dizer, além de médicos e nutricionistas, que carne faz bem. A indústria farmacêutica agradece essa contribuição! E lucra, enquanto rimos quando alguém prefere uma salada. Comemos agora infelizmente uma salada de agrotóxicos. Para onde fugir?
Assim caminha a humanidade, sem nem poder viver seus surtos dignamente. Ou saber da verdade. É como a gente vê as coisas. É como as coisas são.

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