Vésperas


"Whatever you decide for the moment is holy..."

Duran Duran, A Matter of Feeling

Às vésperas escrevo. Às vésperas sempre vivi, sempre escrevi. Às vésperas da escuridão de um dia que meus olhos jamais desejaram ver. Não pedi para estar aqui e talvez - oh, que ingratidão! - não devesse estar. Da gestação de mamãe, antes de mim um virou anjo, depois de mim, outro. Fui um bebê arco-íris, uma menina (in)desejada. Just a matter of feeling. 

Queria adentrar os dias dessa primavera outubriana em paz, sem delongas, sem resistências, sem armas e traumas, mas ou o que desejo no fundo é outra coisa ou o universo conspira contra minha medíocre pessoa. Falar não posso, carrego o peso. Ninguém jamais carregou tal peso, o do silêncio imposto pelo nascimento, por um trauma esquecido, por uma dor inominável. Tudo ao contrário se dá do que em vão desejo. Às vésperas desejo. 

Eu vou deixando a água do café ferver, está frio, quase seca a água, tomei banho, está frio, meus olhos embaçados, antes fosse pela chuva, mas não. É a chuva interna. Don't say a prayer for me now, save it to the morning after, no, no...

Ninguém jamais carregou um peso como o meu nem vai, pois como indivídua, sou individual, única, somos exemplares únicos de nós mesmos. Que peso é esse, meu Deus? Que coisa é essa em mim, que silêncio, que solidão, que literatura é essa que me ecoa por dentro e não ouso expor para formar o cânone? Que sensação é essa? my misery...

Eu surgi na madrugada, já silenciosa. Um bebê que não ousou chorar ante a imensidão do mundo. Acho que ouvi o eco, um eco gigantesco ao surgir, eu só quis dormir, e essa fuga para o sono vem comigo até hoje. 

Meus olhos embaçam, a chuva interna. Porca literatura digitada, não tem papel para eu afastar e evitar a chuva interna. Tem chuva lá fora, tem chuva na música no fone, tem a chuva aqui. Daqui. Dentro. 

Miserável "homem" que sou! Não vou mais me desculpar.

"Happy birthday to you was created for you" (Come Undone, Duran Duran)

Às vésperas escrevo, às vésperas espero, de véspera sou. Que venha o despertar de mais um ano que finda e inicia, imbricado em si mesmo.

Bye

Comentários

Jaime Adilton disse…
Às vezes, me sinto assim também, às vésperas do desespero, do abandono, da solidão. Sei que a sensação de se saber ou sentir-se um zé-ninguém ou uma maria-vai-com-as-outras, é simplesmente horripilante. Ninguém compreende a sua dor. E ela te empurra, inexoravelmente, para o abismo em frente. Mas, (e sempre há um mas), a sempre bendita poesia que por vezes, espia, de madrugada, através do olho do gato ou de um pernilongo desatento prestes a ser devorado pela lagartixa, nos arrebata do inverno e nos salva do fim ignominioso. A poesia sempre nos redime!!!
Rebeca disse…
Jaime, obrigada pelo comentário, seja sempre bem vindo!

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